Mark Beyer: Mais noites pertubadoras

MARK BEYER: MAIS NOITES PERTUBADORAS
Por Paul Gravett

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Depois de ter sido deliciosamente perturbado por seus quadrinhos nas páginas da Raw, eu vim a conhecer Mark Beyer em 1982, quando ele foi convidado para vir a Londres participar da exposição de quadrinhos Graph Rap no Instituto de Arte Contemporânea. Por sorte, tive a oportunidade de entrevistá-lo para a segunda edição da Escape Magazine, uma das pouquíssimas entrevistas dadas por ele. Acompanhei o trabalho de Beyer de perto, desde seus títulos independentes até as tirinhas de Amy e Jordan, passando por suas narrativas visuais e incursões no mundo da pintura, mas eventualmente acabei perdendo contato com ele, exceto por uma outra exposição no Festival de Quadrinhos de Berlim em 2003.

Por isso, fiquei empolgado ao descobrir, na programação “off” do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême deste ano, que Beyer está fazendo novas impressões em serigrafia para os malucos da editora Le Dernier Cri, de Marselha. O chefão Pakito Bolino gentilmente me colocou em contato com ele e, desse reencontro, surgiu um apanhado de tesouros nunca vistos, como as peças acima (1976) e abaixo (1978), um quadrinho inédito para a Art Review, além de mais respostas e revelações do próprio sobre seu traço único, com um pé na arte “marginal” e que transita entre o quadrinho e a pintura. Beyer está de volta.

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“Por muitos motivos, toda essa questão de ser cartunista ou não foi motivo de muita confusão para mim”. Sendo filho único, aluno normal que sofre bullying na escola e também uma decepção para seu pai, Mark Beyer usava o desenho como uma maneira de matar o tempo, deixando evoluir gradualmente seu estilo distinto, intenso e decorado, e evitando qualquer pensamento premeditado, educação formal em arte ou orientações de livros que ensinam o passo a passo. Longe de ter um falso ar naïf, sua arte é “a única maneira que sei como desenhar; eu não conseguiria fazer uma imagem realista nem em qualquer outro estilo, mesmo que minha vida dependesse disso”.

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Mais interessado em se tornar escritor ou cineasta, talvez Beyer jamais tivesse insistido nos quadrinhos, não fosse a inspiração vinda dos intransigentes quadrinhos alternativos norte-americanos e o apoio inicial de Art (Maus) Spiegelman e Bill (Zippy) Griffith, coeditores da antologia Arcade, que escolheram nada menos do que o segundo quadrinho da vida de Beyer para sua sexta edição em 1976. Empolgado, Beyer achou que seu estilo se encaixava bem nessa vertente e acabou publicando três quadrinhos por via independente, seguidos de seus livros A Disturbing Evening (1978, acima) e Dead Stories (1982), além de ter sido convocado por Art Spiegelman e Françoise Mouly para fazer colaborações para a revista Raw e outros títulos de prestídio, como é o caso do quadrinho autobiográfico de uma página que saiu na antologia Lemme Outa Here, abaixo.​​​​​​​

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Os personagens mais recorrentes de Beyer são Amy e Jordan, um casal de eternas vítimas, cheios de vulnerabilidade e parecidos com bonecas: ela vestida com sua bata de losangos, ele todo de preto com um alvo bem no peito. Aparentemente aprisionados em seus quadrinhos, eles suportam um desespero urbano interminável que fica visível nos inquietantes layouts e composições e formas ameaçadoras que ficam espreitando do lado de fora das tiras. Traumas nunca ficam muito distantes da subsistência sitiada dos dois, que foi recontada na graphic novel Agony em 1987, na série We’re Depressed (abaixo) e nas tiras semanais de jornal de 1988 até inícios de 1996, que foram compiladas num volume em 2004 pelo designer Chip Kidd. O trabalho de Beyer, mais para um cult em ascensão do que parte do mercado de massa, não oferece nenhuma piadinha tampouco doses de alívio, seu negócio é transmitir uma atmosfera sinistra digna de pesadelo, que esbarra num fluxo subterrâneo de anarquia moderna.​​​​​​​

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Incerto de seus rumos artísticos, Beyer abandonou os quadrinhos por volta de 1997 e voltou a fazer imagens únicas em grande escala, que ele já expunha desde 1977 no Moravian College, em Bethlehem, na Pensilvânia, perto de sua cidade natal de Allentown. Esses desenhos feitos com caneta e tinta, que não eram estritamente pinturas, encontravam suportes como vidro ou plexiglas, e eram coloridos com tinta acrílica aplicada sobre uma fina camada de fixador (veja abaixo um exemplo de 1999).

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O novo quadrinho de Beyer para a Art Review (abaixo) indica um retorno surpresa depois de dezesseis anos a esses personagens que são sua assinatura, muito embora (alerta de spoiler!) esse talvez seja o canto do cisne para eles. “Eu queria matar de vez a Amy e o Jordan dentro da grande tradição de Fritz the Cat e outros personagens dos quadrinhos que foram assassinados”. Em 1972, Crumb criou a famosa história em que o felino protagonista era golpeado na parte de trás da cabeça por uma ex-namorada irada com um picador de gelo, um ato para vingar a distorção sofrida pelo personagem na animação de Ralph Bakshi.

Foi somente no outono de 2011 que Beyer voltou a trabalhar com quadrinhos e a se sentir satisfeito com os resultados. “A verdade é que estou completamente esgotado de Amy e Jordan, mas não da ideia fazer quadrinhos”. À medida que as fronteiras que separam arte e quadrinhos se dissolvem cada vez mais, o mesmo acontece com o traço singular inventado por Beyer, seja enquanto cartunista ou artista.

O colecionador americano Tom Wagner organizou Mark Beyer: With/Without Text, primeríssima exposição individual retrospectiva e detalhada, com mais de setenta amostras da arte e dos quadrinhos de Beyer no Urban Arts Space da Universidade do Estado de Ohio, de 8 de janeiro a 23 de fevereiro de 2013. Em 2016, foi a vez da New York Review Comics lançar uma nova edição de Agony com prefácio de Colson Whitehead.

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Amy & Jordan. Publicado originalmente em 27 de maio de 2012 na revista Art Review.
Amy & Jordan. Publicado originalmente em 27 de maio de 2012 na revista Art Review.

Sobre o autor

Conhecido como uma das maiores autoridades da Inglaterra em quadrinhos/narativas visuais, Paul Gravett é jornalista freelance, curador, palestrante e radialista, e trabalha com narrativas visuais há mais de vinte anos. Fez a curadoria de várias exposições de arte em quadrinhos, desde a história dos quadrinhos britânicos para o Centre National Comics da França em Angoulême até o Festival anual Comica no Institute of Contemporary Arts, em Londres.Tem escrito sobre narrativas visuais para vários periódicos, incluindo The Guardian, The Comics Journal, Comics Internacional e Blueprint. http://www.paulgravett.com/

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