Um tempo morto

No cruzamento da filosofia, da poética e do ensaio, Nathanaël nos entrega aqui uma correspondência que se oferece ao leitor como uma ética do encontro. Uma foto de Claude Cahun se impõe como alvo das atenções deste texto que, escrito num entregênero, se pretende tanto como narrativa (impossível) do desaparecimento, do afastamento e da (ir)responsabilidade histórica, quanto infatigável inferno de um olhar. O que volta a ser questionado nestas páginas e está irrevogavelmente em jogo é nossa situação diante daquilo que – da língua, mas também de e em nós mesmos – (nos) escapa.

É a primeira vez que o texto, parte do livro L’Absence au lieu (Claude Cahun et le livre inouvert), publicado em francês em 2007, é traduzido para o português.
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Figuras da Amazona nas Heroínas de Claude Cahun

Mas, antes de ir embora, eu lhe peço,
me dê o endereço de um outro monstro,
de um autêntico monstro.”

Claude Cahun, “A Bela”

Nesse fim de século XIX considerado decadente, algumas mulheres de letras ousam colocar em questão mais uma vez a divisão de papéis entre masculino e feminino, ousam contestar a subordinação do sexo feminino ao sexo masculino. Assim, Renée Vivien em seus contos (La Dame à la Louve) e Rachilde em seus romances (L’Animale, La Jongleuse, Monsieur Vénus) propõem uma outra representação do gênero feminino, buscam inverter a distribuição tradicional de valores e qualidades próprios a um e ao outro sexo. Um fenômeno se desenvolve na Belle Époque: a Paris Lesbos tende a se tornar mais visível e “Paris passa então a se impor como capital do safismo”.[1] A redescoberta da poetisa Safo, conduzida particularmente por Renée Vivien, e a decorrente polêmica acerca da própria pessoa de Safo e de sua orientação sexual ocorrem dentro de um movimento mais amplo de afirmação de uma classe de intelectuais qualificadas de amazonas, como Nathalie Barney, Renée Vivien, Gertrude Stein e Élisabeth de Gramont. Essas mulheres levam uma existência independente, sem hesitar em se travestir, assumindo relações homossexuais publicamente e tentando ocupar um lugar que até então era reservado essencialmente aos homens. O tipo da lésbica é apenas uma das potenciais declinações da amazona.

Claude Cahun viria a conhecer e frequentar algumas dessas amazonas poucos anos depois. Em 1925, ela escreveu uma coletânea de “contos” intitulada Heroínas, na qual revisita determinados arquétipos femininos e libera-os do verniz conformista, dos clichês maniqueístas demais que lhes foram dotados progressivamente pela tradição. Opõe a verdade da literatura à mitologia patriarcal que faz das mulheres eternas vítimas ou seres duplos, em quem não se pode confiar, triunfando através de estratagemas. Com a atualização a que submete as figuras clássicas, Cahun procede a inversões, reviravoltas e deslocamentos e, ao fazer isso, coloca em relevo a capacidade de escolha dessas heroínas, para além de qualquer julgamento moral, oferecendo ao leitor contemporâneo uma leitura deslocada desses arquétipos. Sob a pluma de Cahun, elas são mulheres independentes que conduzem seu destino, independente do preço a se pagar. Misturando opostos, embaralhando as categorizações. Cahun propõe amazonas pervertidas, que escapam à ortodoxia, que combinam traços “masculinos” e traços “femininos”, oscilando de uns a outros sem jamais se prender a eles.

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